Autoridades instaladas pela Rússia na Crimeia tomaram o controle de pelo menos 2,6 mil imóveis pertencentes a cidadãos ucranianos que se recusaram a reconhecer a ocupação da península, segundo levantamento da rede Radio Free Europe (RFE). O confisco das propriedades ocorre desde 2014, ano da anexação ilegal da Crimeia, e se intensificou após a invasão em larga escala da Ucrânia em 2022.
Casos como o de Svitlana Kolisnichenko, que viveu por anos em um apartamento de três cômodos no território ocupado, mostram a sistematicidade da prática. Ela descobriu que um ex-soldado ucraniano, hoje cidadão russo, passou a morar no imóvel com a família. “Acho que nossa vizinha, Lyudmila, e o marido dela, Vitaliy, deram a ele as chaves”, disse Kolisnichenko. “Ela deve ter começado a alugar nosso apartamento ou algo assim.”

Kolisnichenko relata que só soube da invasão quando um conhecido ligou dizendo que militares estavam sendo recebidos no prédio. Segundo ela, há ao menos sete apartamentos em situação semelhante no mesmo edifício. “Isso virou um fenômeno em massa”, afirmou.
O confisco atinge principalmente quem se recusou a aceitar passaportes russos. “Nós éramos contra as políticas da Rússia, por isso não pegamos o passaporte. Essa foi a única razão”, declarou Kolisnichenko. “Tinha todo o direito de tirar um passaporte, minha mãe está na Rússia, mas não quis. Não gostei dessa agressão.”
A organização não governamental Centro Regional de Direitos Humanos explica que cidadãos de países considerados “hostis” pelo Kremlin — como a Ucrânia — podem ter seus bens confiscados de forma legal, segundo a legislação russa. “Se [os países] tratam a agressão russa de forma desfavorável e impõem sanções, então [seus] cidadãos serão considerados não amigáveis”, disse Mykyta Petrovets, representante do grupo.
Ela acrescenta que muitos proprietários receberam cerca de um ano para vender ou transferir seus imóveis. Após esse prazo, tiveram início vendas forçadas via decisões judiciais, com os bens sendo leiloados. Um caso simbólico é o do apartamento da primeira-dama ucraniana, Olena Zelenska, vendido por 44 milhões de rublos (R$ 3 milhões) em 2023.
Yulia Stezhko também descobriu que o terreno da família com vista para o mar foi confiscado sem aviso prévio. “Compramos com as economias da família inteira”, contou. “Esperávamos passar as férias das crianças ali, como tradição. Meu avô materno também está enterrado lá.” Ao questionar as autoridades, recebeu uma resposta direta: “Um decreto entrou em vigor, segundo o qual eu não tenho direito à propriedade. E ponto.”
Desde 2020, um decreto assinado por Vladimir Putin proibiu estrangeiros — incluindo ucranianos — de manterem terras na Crimeia, declarando a região como território fronteiriço da Rússia. A Corte Europeia de Direitos Humanos (ECHR) declarou a prática ilegal, mas suas decisões não são mais reconhecidas pela Rússia, que foi expulsa do Conselho da Europa em 2022. Atualmente, 1.101 ações de ucranianos sobre violações de direitos na Crimeia seguem registradas no ECHR, mais da metade envolvendo perda de propriedade.